Dois pensamentos chamaram a nossa atenção essa semana. O primeiro veio em uma postagem do Mat Dryhurst no X, e apresenta uma visão super interessante sobre propriedade líquida e NFTs - ele diz que (tradução livre): "Eu gosto de NFTs porque elas introduziram uma dinâmica abstrata de propriedade líquida, onde qualquer um pode ver/ouvir a obra de arte mas apenas alguns podem possuir/vender as mesmas. Eu acho isso elegante".
O segundo foi apresentado em um texto publicado no Mirror pelo James Beck, intitulado "What happens when the creative class makes their own currencies?". Um dos tópicos levantados por ele é o paradoxo da escassez aplicada artificialmente a obras digitais em NFT, enquanto objetos digitais são por essência e definição abundantes e podem se espalhar amplamente pela internet.
Apesar de inicialmente os temas parecerem separados, vemos uma ligação bem interessante entre eles. Para isso, vamos conversar sobre o que entendemos por "raridade" atualmente.
Estamos na era da atenção, no sentido de que a atenção é um dos bens mais raros e difíceis de se conseguir atualmente.
A internet nos trouxe isso. Teoricamente, todos nós somos produtores de conteúdo de alguma forma, seja em nossos sites, blogs ou redes sociais - e os artistas, então, são produtores de conteúdo por excelência.
Mas também sabemos que não adianta produzirmos o melhor conteúdo possível, se ele não atingir o público, se ele não obtiver atenção. Atenção passou a ser o nosso objetivo principal, na sociedade atual.
As marcas já entenderam isso, e cada vez há mais investimento delas em redes sociais e influenciadores. A web 2.0 em massa já sabe disso - o que importa é que a mensagem (seja qual for ela) atinja o maior número de pessoas possível. Que ganhe muita atenção.
Mas em um mundo inundado de produtores de conteúdo, os conteúdos que conseguem obter esse grau de atenção são raros. A raridade, aqui, não vem da exclusividade, mas sim da dimensão da atenção que recebeu.
McKenzie Wark, em "My Collective Ass" (citado por James Beck em seu texto), apresenta uma descrição bem interessante sobre isso, do ponto de vista da arte: "Paradoxalmente, um objeto cuja imagem foi amplamente espalhada é um objeto raro, no sentido que poucos objetos tem a sua imagem amplamente espalhada. Isso pode ser explorado para criar valor para objetos de arte que não são inicialmente raros, no senso tradicional de singularidade e raridade. O futuro do colecionar pode estar menos em ter uma coisa que ninguém mais tem, e mais em ser dono de uma coisa que todos possuem".
“Paradoxically, an object whose image is very widely spread is a rare object, in the sense that few objects have their images spread widely. This can be exploited to create value in art objects that are not in the traditional sense rare and singular. The future of collecting may be less in owning the thing that nobody else has, and more in owning the thing that everybody else has.”
Também é interessante vermos que esse questionamento sequer é novo no mundo da arte - ainda que as abordagens e fundamentos sejam diferentes.
Por exemplo, na revista Literarische Welt (Mundo literário), publicada em 31 de julho de 1931, um debate entre o editor Willy Haas e o pintor Fritz Pollak já tocava neste assunto. Enquanto Pollak condenava as reproduções Haas as defendia. Para Haas, o conceito de “original” havia perdido seu sentido social e nos termos de sua “função social”, as reproduções seriam mais originais do que os originais que estão nos museus.
Também Walter Benjamin, na mesma época, em seu livro "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica", ao discorrer sobre a influência da fotografia e do filme na alteração da percepção sobre obra original, dizia:
... é possível uma multiplicidade de revelações a partir de uma chapa fotográfica; a pergunta pela revelação autêntica não faz sentido. No momento, porém, em que o critério da autenticidade fracassa na produção artística, a totalidade da função social da arte é transformada. No lugar de sua fundação sobre o ritual, esta deve fundar-se em outra práxis, a saber: a política.
Ora, se desde aquela época já se defendia que a reprodutibilidade técnica de uma obra de arte (agora elevada à enésima potência com o advento da internet e da blockchain) havia transformado a função social da arte, e consequentemente sua forma de distribuição na sociedade, por que o mercado de NFT, em seu nascedouro, valorizou tanto a obra única, a famosa 1/1?
Afinal, do ponto de vista técnico, ela contraria a própria essência não só da arte digital (de reprodutibilidade infinita) como a ideia de descentralização da Blockchain (se só um colecionador pode tê-la, o marcado de arte onchain passa a ser absolutamente centralizado na mão de poucos colecionadores, como o mercado tradicional de arte).
Na nossa opinião isso se deu porque o artista que entrou no mundo da web3 não entendia ainda o funcionamento dele. Nenhum de nós entendia. O mundo que cerca o NFT ainda é muito novo para o artista em geral, e estamos trilhando o caminho para descobrir as melhores formas de distribuição de arte através da blockchain.
Então a tendência natural inicial foi replicarmos o que conhecíamos, o formato de venda que estávamos acostumados, o mercado tradicional. E nesse, a valorização sempre se deu através da raridade decorrente da quantidade (obras únicas e edições limitadas, vendidas a preços maiores), pelo menos no que tange às artes plásticas, fine prints, etc..
Também existem questões mais particulares como ego, etc... mas essas não vamos abordar aqui.
Fato é que, esse mercado restringe demais o tamanho do potencial de venda do artista.
E dá muito poder aos poucos colecionadores, que com isso passam a exigir determinados comportamentos dos artistas.
É uma réplica exata do mercado tradicional de arte, inclusive com seus grave defeitos.
Quem está nesse mercado há pelo menos 1 ano, já viu (ou participou) de discussões acaloradas no X justamente baseadas nessa briga de poder entre artistas e colecionadores, decorrentes desse formato de mercado.
Já se analisarmos a história dos mercados de cinema e de música, eles foram construídos de maneira dimetralmente oposta: venda de cópias (em que base fosse: vinil, cassete, fitas VHS, CD, DVD) sem quantidade previamente definida, buscando a venda em grandes quantidades e a preços mais em conta, pois o que se buscava era um alto volume de venda (o que necessita, invariavelmente, de uma baixa barreira de entrada/compra para o consumidor).
Mais adiante, esse mesmo mercado seguiu para o formato de "aluguel", que são os planos pagos de streaming, ou a compra individual de arquivos digitais não baseados em blockchain (que em sua maioria são simplesmente contratos de licença de uso de software), que não te dão a real propriedade daquele filme ou música - se o app em que a compra foi feita sair do ar, adeus biblioteca pessoal de mídia.
E agora esses mercados estão se voltando para a venda de músicas e filmes em NFT, que replica o mercado que eles já estão acostumados (edições abertas a preços acessíveis), mas garantindo a propriedade ao comprador, via registro na blockchain. Excelente!
Varias experiências com livros digitais estão seguindo por esse caminho também.
E os demais ramos da arte?
O que temos visto é que o mercado ainda está dividido.
De um lado temos um grupo de artistas e colecionadores que continuam pregando que uma obra de arte em NFT só terá valor se for única ou em uma edição pequena e limitada, e portanto atender a uma determinada dinâmica de mercado, fomentada especialmente por um determinado tipo de colecionador.
De outro lado, vemos movimentos como o criado pelo Zora, que estão investindo em fomentar o mercado de edições abertas a preços mais acessíveis, ou mesmo gratuitas (e ainda assim remunerando os artistas, através de protocol rewards - escrevemos nosso primeiro texto sobre isso em outubro do ano passado).
Outro exemplo foi o lançamento da blockchain Base, no evento Onchain Summer, que teve lançamentos diários de NFTs de grandes nomes do NFT e de grandes marcas, todos em edições abertas e a preços acessíveis.
Nós, particularmente, preferimos o mercado atual, de edições abertas.
Na nossa opinião, além desse modelo ter uma ligação mais forte com o mundo descentralizado das blockchains e da arte onchain, ele também tem o poder de, finalmente, democratizar ramos da arte que sempre ficaram à mercê de grupos que controlam o mercado.
E nossa experiência particular, nesse quesito, tem sido ótima.
Entre 2020 e 1º semestre de 2023, enquanto estávamos atuando somente no mercado "tradicional" de NFT, com obras 1/1 e edições pequenas, em marketplaces como o Foundation, OpenSea e assemelhados, chegamos a um total de 69 colecionadores únicos no ecossitema ethereum (ethereum e suas L2).
Começamos a trabalhar algumas edições abertas no Manifold no meio de 2023, durante o Onchain Summer, usando a Base como rede, e também no ano passado entramos no Zora. Faz exatos 242 dias que mintamos nossa primeira obra no Zora, e essa semana atingimos a marca de 804 colecionadores únicos la, no mesmo ecossistema Ethereum.
Para nós, esse é um número marcante.
E queremos crescer esse número mais e mais.
Afinal, essa é uma das formas de democratizar a nossa arte, e a arte em geral.
E você, já parou para pensar no mercado de arte em geral, e de NFT, dessa forma? Qual dos formatos você prefere?